Por Fernanda Paraguassu
(Coordenadora Editorial)
Decorar o conteúdo para a prova e depois esquecer tudo o que estudou. Quem nunca? Nesta entrevista, conversei com Luciane Valls, autora do livro Criatividade Contagiante, sobre os desafios e oportunidades do ensino da criatividade nas escolas. Luciane discute como o sistema educacional tradicional, ainda muito centrado em memorização e avaliações padronizadas, inibe o desenvolvimento criativo dos alunos e os obstáculos que as escolas enfrentam para transformar esse cenário. Ela também nos apresenta uma visão inspiradora de como ambientes criativos podem promover a diversidade e inclusão, além de destacar a importância da formação adequada dos professores para estimular o pensamento criativo. Ao longo da entrevista, Luciane compartilha reflexões e estratégias para integrar a criatividade de maneira eficaz no currículo escolar, abordando questões como empatia, respeito à diversidade e o impacto da criatividade no engajamento e aprendizado dos alunos.
Luciane Valls é professora e palestrante na área da criatividade e facilitadora de processos criativos. É formada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e possui Mestrado em Criatividade pela State University of New York (Buffalo-NY).
1. O sistema educacional tradicional ainda segue um modelo que inibe a criatividade? Quais são os principais obstáculos que as escolas enfrentam para mudar essa realidade e como podem superá-los?
Infelizmente, a estrutura do nosso sistema educacional ainda está muito focada no “ensino das respostas corretas” (ou na reprodução do que já existe) em vez de no “estímulo às perguntas possíveis” (ou na construção de novas alternativas). Ainda existe, em muitas escolas, uma ênfase na memorização de conteúdos e em avaliações padronizadas. Isso tira espaço da imaginação, da curiosidade, da experimentação, da reflexão sobre os erros, da resolução criativa de problemas. Portanto, ainda estamos muito longe do que gostaríamos. Isso se confirma com dados concretos. A avaliação sobre pensamento criativo, realizada na última edição da prova do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], mostrou que o desempenhos dos estudantes brasileiros foi bastante abaixo da média, ficando em 49º em um total de 64 países.
Quando o assunto é promover criatividade, as escolas se deparam com uma série de desafios, passando pela resistência à mudança, pela adoção de currículos engessados, pela falta de tempo para atividades promotoras de criatividade, pela ênfase em avaliações padronizadas, entre outros. Um dos obstáculos que considero mais crítico, porém, é a lacuna na formação inicial e continuada dos professores na área da criatividade. Esse ponto foi apontado, inclusive, como prioridade em um relatório recente sobre o status do pensamento criativo nas escolas do mundo todo. Esse é um ponto chave porque, se resolvermos todos os outros problemas, mas os professores não souberem como estimular o pensamento criativo, seguiremos na mesma situação em que estamos.
Hoje eu percebo, por exemplo, que já existe uma preocupação dos professores com a oferta de atividades mais criativas, especialmente pelo baixo nível de atenção e de engajamento dos alunos nas aulas. Isso tem um lado muito positivo, pois começa-se a dar mais valor para a criatividade. Só que existe uma falta de clareza na diferença entre uma aula criativa e uma aula que promove a criatividade. Vejo muitos professores buscando, por exemplo, atividades lúdicas e interativas, mas não necessariamente atividades que estejam ativando o pensamento criativo dos seus alunos. Ou seja, em alguns momentos, vejo o professor querendo ser mais criativo, mas ainda não buscando promover a criatividade dos seus alunos. Isso não é suficiente. É por isso que uma formação adequada de professores nessa temática é algo tão essencial.
2. No livro, você destaca a importância da criatividade para a construção de uma sociedade mais diversa e inclusiva. Como um ambiente criativo pode ajudar a promover a diversidade na escola e no aprendizado?
Eu brinco com a palavra CRIAtiVIDAde mostrando que, até na grafia, ela “cria vida”. A criatividade dá vida a novas ideias, a novos projetos, a novos produtos. Numa escola, isso significa dar vida a novas práticas pedagógicas, a novos formatos de aula, a novas formas de expressão de ideias, a novas formas de avaliação…
Um ambiente criativo valoriza a busca de muitas alternativas e, por isso, oferece diferentes materiais e estimula múltiplas formas de expressão das ideias. Numa escola, isso significa oferecer para os alunos uma riqueza de materiais e recursos para exploração e aprendizado. Ao considerar diferentes interesses, estilos de aprendizagem e necessidades educacionais, a escola favorece uma relação mais favorável com a aprendizagem, tornando-a mais significativa e profunda.
Além disso, um ambiente criativo considera múltiplas opiniões e perspectivas e adapta-se para diferentes necessidades. Uma escola mais criativa está, portanto, muito mais aberta para reconhecer, respeitar e acolher as diferenças. Ela entende, inclusive, que a diversidade a fortalece, pois favorece a geração de novas ideias e possibilidades. Isso impacta na valorização da singularidade de cada aluno, no desenvolvimento da empatia e na criação de um senso de pertencimento.
Portanto, uma escola que acolhe a criatividade não segue simplesmente repetindo o que sempre foi feito. Pelo contrário, ela está muito mais aberta para o novo. Isso a torna mais preparada para pensar em formas de aprendizagem mais personalizadas e flexíveis, tornando-a muito mais empática e inclusiva.
3. Sabemos que a falta de espaços para expressão e aceitação pode contribuir para problemas como o bullying. Como a criatividade pode ser uma aliada na construção de um ambiente escolar mais acolhedor e menos excludente?
Um dos princípios básicos do pensamento criativo é postergar julgamentos. É receber as novas ideias, primeiramente, com um olhar de acolhida e curiosidade. Existe um conceito em criatividade, que eu gosto muito, que é do “advogado do anjo”. Diferente do advogado do diabo, que já sai vendo os problemas e fazendo julgamentos, o papel do advogado do anjo é o contrário. Ele não descarta nenhuma ideia. Aceita todas elas, olha para cada ideia e pensa: O que existe de positivo nessa ideia? Ela é barata? É fácil de implementar? É sustentável? É divertida? É de fácil manuseio? O que ela tem de especial? Isso não significa que a ideia não tenha problemas ou não precise de ajustes, mas o primeiro olhar para o novo é sempre buscando o que existe de positivo.
Imagine se, desde pequeno, a gente aprendesse a olhar para tudo o que é novo e diferente dessa forma? A acolher, respeitar e buscar o que a gente enxerga de positivo? Será que a gente não seria mais acolhedor com os outros?
4. Muitos professores sentem-se pressionados pelo currículo e pela necessidade de cumprir metas. Como equilibrar a criatividade com as exigências pedagógicas e avaliações tradicionais, sem deixar de lado temas como empatia e respeito à diversidade?
Um dos pontos que eu mais enfatizo nas minhas formações com professores é que a criatividade não compete com a aprendizagem; ela a potencializa. Portanto, é um equívoco achar que dedicar tempo para promoção do pensamento criativo vai “tirar tempo” da aprendizagem. Quando a gente planeja atividades promotoras de pensamento criativo, a gente demanda que os nossos alunos acionem níveis mais elevados de pensamento – eles precisam partir das informações que conhecem, mas ir além do que já existe. Precisam gerar novas alternativas, analisar cada uma delas, comparar as opções, decidir qual delas é a mais adequada para o contexto e ainda aprimorar a ideia inicial. Isso tudo envolve uma diversidade e riqueza de processos cognitivos. É por isso que a criatividade está associada a aprendizagens mais profundas e significativas.
Infelizmente, porém, a falta de formação adequada na área da criatividade faz com que muitos professores não tenham a devida clareza do que é pensamento criativo e de como ele se desenvolve. Assim, a criatividade acaba sendo vista como algo extra, grandioso ou que demanda muito tempo. Porém, quando a gente ajuda os professores a entenderem quais são os aspectos promotores de criatividade, eles se sentem muito mais seguros para introduzi-los nas suas aulas, de forma mais simples e estratégica, concomitante com o desenvolvimento dos demais objetivos pedagógicos.
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